Há
dias venho acompanhando todo o sucesso de Kony 2012 sem me
manifestar de forma mais clara. Morando nos Estados Unidos há
três anos, envolvida com
igrejas diferentes e estudantes universitários
no meu dia-a-dia, o nome Invisible Children é
figurinha carimbada no meu cotidiano – a ONG tem pequenos grupos em
muitos campi de universidades norte-americanas. Como estudante em
Atlanta, na Georgia, fiz parte de em dos grupos que atuava na
conscientização acerca
de problemas africanos dentro da Kennesaw State University.
Paralelamente, participava da equipe de Model African Union (modelo
da Liga das Nacoes Africanas), comum a universidades daqui, com
competições nacionais e
internacionais, encontrando-se duas vezes por semana com meus peers
para treinar procedimentos de diplomacia e discutir problemas
pertinentes ao território
africano. Como alguém que
trabalhou como tradutora e intérprete
de missionários
norte-americanos no Brasil por quase dez anos ininterruptos, já
conhecia há muito tempo a
índole “salvadora”
das pessoas que nascem aqui – e a mania de estabelecer simplismo
para problemas de nações
complexos demais para o nacionalismo cego em vigência,
parte inata do pensamento de muitos nascidos nesse país
de dimensões
continentais. Ouvi muitíssimas
vezes que os americanos tem como dever tomar conta do mundo, por
terem mais recursos e conhecimento – ouvi essa mesmíssima
opinião tantas outras
vezes ainda morando no Brasil, o que me indignava muito, deixava-me
perplexa, até que,
morando em território
norte-americano percebi que, sim, eles acreditam piamente nessas
palavras. Seja pela dimensão
continental do país, seja
pelo respeito ao passado, seja pela idolatria aos fundadores da
nação, seja pela
educação fundamental e
média deficiente –
compensada nos dois primeiros anos de “general education” de
qualquer faculdade que seja cursada aqui, semelhantes ao nosso Ensino
Médio, caríssima
e desnecessária aos
muitos estudantes internacionais que tenho como amigos por todos os
campi pelos quais passei – e pela liderança
ensinada como parte do crescimento humano (que em minha humilde
opinião, serve para
compensar a falta de conhecimento – você
sabe se impor, ainda que seja uma anta que não
saiba nada sobre o mundo), como forma de ser ouvido em uma terra onde
muitos são talentosos, e
sim, egocêntricos... seja
por livros de história
tendenciosos, ou mesmo por aulas sobre história
e geografia mundial que ou não
fazem parte dos currículos
escolares ou são escritos
por pessoas da terra do Tio Sam, com esse mesmo nacionalismo
exacerbado envolvido... como povo, eles crêem,
com uma certa inocência,
que são, sim, salvadores
do mundo.
Nasci
filha de descendentes de espanhóis,
africanos, índios e
poloneses. Aprendi a respeitar as diferentes nações
e o “diferente” como um todo, como norma, como parte de uma
realidade muito além do
que possamos compreender. Sempre aceitei diferentes culturas partindo
do ponto que as mesmas são
representadas por diferentes idiomas, que são
em si representações de
diferentes recortes de mundo, assim complexos de serem completamente
entendidos - a não ser
que haja convivência com
o povo em questão. Nunca
aceitei xenofobia ou representações
simplistas das nações
desse mundo. Sempre tive horror a momentos da história
como o Colonialismo, o Neo-colonialismo, Crusada, Inquisição
e as muitas guerras já
acontecidas na história
mundial... qualquer tentativa de imposição
de uma cultura sobre a outra como a correta para mim é
inválida e anula-se em si
mesma – a noção de
belo ou correto no que tanje a culturas é
inconclusiva, pessoal, relativa. O mesmo belo e correto existem em
todas as culturas, em formas distintas. Ceifar o direito do outro em
proveito próprio por
qualquer justificativa dada é
algo injusto, egoísta.
Sempre fui simpatizante de estudos de paz (Peace Studies) e nunca
apoiei qualquer iniciativa de guerra – uma das razões
pelas quais vim a esse mesmo país,
tão conhecido por incitar
guerras e com estudiosos do conceito de paz e manutenção
do mesmo tão controversos
(vim para Atlanta para estudar mais acerca de Martin Luther King Jr.
e já conheci um dos
filhos dele, algo que me emocionou profundamente.)
Em
abril do ano passado, estive na apresentação
de um sample de Tony – o que havia sido feito até
então com essa história, de um menino vitima de atrocidades como child-soldier – seguido do depoimento emotivo de um rapaz de Uganda salvo pelo
projeto, alguém de quem
virei amiga próxima.
Fiquei encantada não
apenas com a ajuda da ONG, mas com a historia de superação
do jovem de 24 anos, cursando sua segunda faculdade – Teologia como
uma delas – e sonhando em ser representante de seu país
em relações exteriores
algum dia. Encontrei meu novo amigo em outro evento da Invisible
Children realizado alguns dias depois no centro de Atlanta, em
uma campanha chamada “25”, que pedia 25 horas de silêncio
pelos anos que Joseph Kony não
havia sido capturado, e que terminava nessa casa de shows fechada
pela ONG para celebrar o silêncio
supostamente oferecido como respeito à
falta de voz dos ugandenses – com direito a contagem regressiva das
horas e gritaria como uma torcida de futebol quando as 25 horas foram
vencidas. Honestamente, achei patético
– primeiro, os ugandenses não
tinham noção do feito,
segundo porque a platéia
em questão, apinhada no
local, constava de menos de 100 pessoas, todos jovens brancos, ricos
e que vêem as iniciativas
da organização como
forma de sair da rotina – de conhecer o “novo”, de ajudar com
os recursos que, na mentalidade retrógrada
e restritiva deles, só
eles possuem. Os únicos
representantes de nações
diferentes lá éramos
eu e o jovem de Uganda. Vídeos
com máquinas possantes
foram feitos – marca da Invisible Children – com
documentaristas conhecidos, uso de grua, fotos com poses planejadas.
A mesma iniciativa aconteceu em outras 25 cidades americanas, e os
organizadores incitavam o espírito
de competição nos
participantes, pedindo as poses mais comoventes possíveis,
algo bem comum as pessoas daqui - como se o problema todo fosse sair
bonito na foto ou parecer mais empolgado, envolvido, engajado do que
as outras cidades participantes. Lidar com emoções
também foi algo usado –
espaço para escrever
cartas a representantes governamentais do país
pedindo ação contra Kony
em envelopes e papéis de
carta com a marca da ONG, fotos belíssimas
– e comoventes - de pessoas de Uganda desfiguradas, espaço
com velas a serem acesas para as vítimas
– tudo muito bem planejado. Nos eventos como um todo, vi algo já
tão conhecido e
vivenciado por mim em tantos anos trabalhando com cidadãos
norte-americanos: tornar o não-conhecido
exótico, fazendo do mesmo
um produto passível de
ser vendido para auferimento de lucro, colocando-o como um
animalzinho em uma jaula, com a possibilidade de ser examinado e não
entendido, mas convertido aos meios dessa terra. O mecanismo é
sempre o mesmo: o que é
diferente deve ser transformado em norte-americano para ser ouvido e
respeitado – comportamento mais xenófobo,
impossível... a questão
toda é vestir a xenofobia
com um Cristianismo barato, onde a plena aceitação
é pregada mas não
vivida, dizer que tudo está
sendo feito em nome de Deus para que os questionamentos não
venham. Pessoas entrando em meu país
para me converter a religião
que eles acreditam ser a certa e única
aceitável ainda que não
saibam nada das minhas origens e história
como um todo? Imagina, tudo é
feito por uma boa causa. Pessoas entrando em meu país
com câmeras possantes,
tirando fotos de minha casa, família
sem pedir permissão
alguma e vendendo tudo como uma situação
digna de pena dos mais favorecidos? Sim, claro – o motivo é
válido. Não
me entendam mal, sou completamente a favor de iniciativas que tragam
alívio aos aflitos,
conforto aos que precisam – desde que a cultura nao seja imposta
sobre outra como tentativa muito bem disfarçada
de dominação – o que
sempre foi o caso dos norte-americanos. O que esperar de uma nação
que passou a ser ouvida no mundo através
do apoio as duas guerras mundiais, sendo oportunista, vendendo armas
para que os países
europeus pudessem destruir uns aos outras, com a morte de inocentes
em questão – o que
esperar de uma nação que
cresceu e ganhou importância
no mundo colhendo os frutos do derramamento de sangue inocente?
Uma
das aulas obrigatórias em
qualquer universidade americana, independente da graduação
escolhida é denominada
intercultural communication (comunicação
intercultural), e tem como intuito ensinar os estudantes daqui
a lidar com estrangeiros. Ainda como aluna de English as a Second
Language, fui convidada a falar em idiomas diferentes para os
ouvintes sentenças
planejadas – como forma de chocá-los
e conscientizá-los da
presença de diferentes
nações no mundo. Fui
muito ativa na International Student Association da mesma
universidade, e sempre me senti em casa, extremamente à
vontade em meio a estudantes de diferentes países,
todos felizes pela oportunidade de estudar nos Estados Unidos, mas
cansados, como eu, de serem vistos como animais exóticos
dentro e fora das salas de aula. Aquele era nosso espaço,
nosso pequeno país, pleno
em liberdade – e apenas alguns poucos americanos apareciam de vez
em quando também para
tentar nos apresentar a cultura yankee. Era comum ver
organizações cristas lá
tentando recrutar estudantes de forma enganadora para supostas aulas
de inglês em suas casas –
que na realidade eram pretexto para lições
de cristianismo – uma tentativa aberta de lavagem cerebral. Nos
muito grupos de universitários
cristãos que frequentei –
sendo muitas vezes a única
estrangeira em meio a eles, em grupos muitas vezes de mil pessoas –
vi, em todo Spring Break, Summer e Fall Break,
estudantes indo a diferentes países
“servir”, sempre com o intuito real de converter as pessoas ao
“American way of life” e ao Cristianismo. Sim, muitos ações
benéficas eram feitas nas
locações escolhidas –
o que nunca me agradou foi enganar, propositalmente, os nativos que
os recebiam de bracos abertos. Tentei iniciar grupos de ajuda a
estudantes internacionais – parei com os mesmos quando vi que o
planejamento estrategico, sempre meu, era modificado para servir
propósitos de
evangelização e a
liderança sempre era dada
a norte-americanos muito mais novos e menos experientes que eu,
sempre com a desculpa de que “não
entendo sobre o país por
não ter nascido aqui”,
que sempre entendi, claramente, como preconceito velado, revestido
por um Cristianismo norte-americano hipócrita,
mal-entendido, piamente aceito e ambicioso, sem o mínimo
de respeito pelo passado, presente e história
das culturas visitadas – e da minha própria.
Quando
vi o vídeo Kony 2012,
não me surpreendi com a
qualidade do mesmo – trabalhei com jovens talentosíssimos
em ministérios
evangélicos grandes e
pequenos, e sei, por experiência,
que as pessoas aqui tem uma auto-confiança
em si absurda, espírito
de liderança que lhes é
ensinado desde muito cedo, recursos tecnológicos
maravilhosos e uma ousadia que leva ao talento – e expressão
livre do mesmo. Assisti ao projeto com a desconfiança
que me sempre foi comum – sabendo já
das intenções contidas
nele. Sempre questionadora, passei a ler mais e mais sobre a ONG, e
tendo mais conhecimentos trazidos pela experiência
de vida aqui - ainda que não
tão ampla - e questionar
os motivos reais de toda a campanha. Ao morar nos Estados Unidos, as
primeiras coisas aprendidas são
1.Eles são excelentes
marketeiros – vendem ate sua mãe
sem que você perceba, e
você ainda a compra sem
nem saber que esta pagando por isso, 2.Eles são
mestres em manipulação
de informação, tornando
o complexo simples, buscando auto-afirmação,
reconhecimento e aplauso. Parti para os fatos nas muitas leituras que
fiz: Kony não encontra-se
em Uganda há seis anos;
apenas 30% da renda obtida pela ONG são
revertidos para os ugandenses – o restante é
usado em salários
exorbitantes e muitas viagens; todos os líderes
são cidadãos
norte-americanos, apenas o “ground staff” (equipe de terra) sao
ugandenses; não háa
um plano real de ação
além da conscientização,
com tratamento das crianças
que crescem e tornam-se adultos sem infra-estrutura e caem na
prostituição ou drogas;
não há
parcerias reais com o governo de Uganda, apenas com o governo
americano e a ONU; essa mesma parceria anterior pode ser justificada
pela presença de petróleo
ainda não explorado no
país africano, o envio de
especialistas pelo governo americano para capturar Kony no ano
passado sem sucesso e a discussão
do envio de militares daqui para parar as ações
de um líder em decadência
que nem se encontra mais no país
em questão e a ausência
de discussães acerca dos
danos que podem ser causados com a captura do vilão,
com a possibilidade de mais mortes de inocentes ao risco de ações
impensadas, provenientes de um país
que nunca se interessou em conhecer nações
estrangeiras a fundo – a não
ser que benefícios possam
ser colhidos, seja por ganho de território,
recursos naturais ou exaltação
dos Estados Unidos. É o
mesmo princípio usado com
os universitários
internacionais – pagamos quatro vezes mais para ter a mesma
educação norte-americana
e temos nosso cérebro
comprado se os resultados obtidos academicamente são
bons através do
oferecimento de cidadania americana – para que eles usem tambem
nosso mérito científico
uma vez mais para benefício
próprio... tudo muito
óbvio, escancarado.
Sim,
sou a favor da conscientização
da problemática dos
soldados-crianças. Sim,
sou a favor de métodos de
pacificação e salvação
para as pessoas que vem sofrendo por conta da barbárie
praticada por Kony – o que me incomoda profundamente é
vender americanismo enrustido em uma salvação
com benefícios a serem
obtidos já pensados de
antemão – desconhecidos
apenas pelo oprimido, desesperado por solução
para seus problemas, não
pensando no que ele pode perder ao aceitar a “ajuda” com
intenções ambiciosas
disfarçada de
benfeitoria. Norte-americanos não
dão ponto sem nó.
A
organização apresenta,
como tudo relacionado a Estados Unidos e Cristianismo aqui, a imagem
de perfeição, revestida
de uma hipocrisia irritante. Os simpatizantes, fanáticos
muitas vezes, defendem a mesma com unhas e dentes, tornando-se
emotivos a qualquer palavra contra as ações
dos líderes da Invisible
Children, que passaram a ser ainda mais comuns com o lançamento
de Kony2012 e um conhecimento em maior escala das falhas
presentes no gerenciamento da ONG – incluindo a tão
pregada transparencia crista, requisitada de todos que moram nos
Estados Unidos. Fui ofendida por muitos amigos meus daqui por
questionar a falta de prestação
de contas da IC e a falta de respeito e simplismo com que eles
tratam a problemática dos
“child soldiers” de Uganda. Sim, admiro o espírito
de justiça a qualquer
custo norte-americano – a noção
de certo e errado é
supostamente inata a eles – ainda que tendenciosa, muitas vezes.
Sim, admiro o ativismo e a iniciativa... mas não
posso me calar e dizer que não
esperava o que se tornou público
hoje: o episódio de
suposto surto do co-fundador da organização,
Jason Russell (masturbação
e depredação em
público).
Ser
falho é algo inato ao ser
humano, e a IC se colocava acima de tudo e de todos – qualquer
pessoa que ousasse criticar a ONG ou pessoas ligadas a ela era alvo
de chacota – como eu mesma fui, deletada por muitos supostos amigos
do Facebook e outras redes sociais por apontar falhas deles. Ver um
pai de família, casado,
com duas crianças e
planos de ter mais sete “surtar” e caminhar nu por uma praia de
San Diego, na Califórnia,
sob influência de alguma
substância – ainda não
sabe-se ao certo se álcool
ou entorpecente – batendo em carros e assuntando as pessoas que
cruzavam seu caminho, ainda que humano, tornou-se patetico ao
extremo. Talvez uma lição
de humildade à pessoas
que, incumbidas do espíritos
de salvadores e de representantes de Deus nessa Terra (os mesmo
títulos que Kony usa para
definir-se), ousavam usar tão
abertamente. O acontecido não
me surpreende – sou cética,
não crio expectativas em
relação à
ninguém, não
confio piamente nas pessoas. Apenas fiquei perplexa com a rapidez com
a qual a “máscara”
usada caiu, ainda de forma tão
aberta e com coincidências
estranhas – o rapaz em questão
foi pego masturbando-se em público
quando pessoas daqui lutam tão
arduamente por manter uma imagem pura e sem arranhões,
quando Russell é tido
como o idealizador e sonhador de uma ONG que luta contra a opressão
e abusos sexuais e psicológicos
impostos a crianças por
um lunático sem limites.
Como confiar crianças
indefesas a um pervertido?
Fica a
lição de não
acreditar em nada sem questionar – no caso exposto, na “bondade”
desmedida, sem segundas intenções,
por “santos” perfeitos; tudo tem um preço.
Outra lição a ser
aprendida é que, como
todo e qualquer povo, os norte-americanos, tão
idolatrados nesse mundo, também
são passíveis
de falhas, muitas delas óbvias
e patéticas como essa.
Aguardo
agora as desculpas esfarrapadas a serem usadas por Jason Russell para
o episódio. Já
notei que a mídia
norte-americana vem usando um tom neutro, não
expondo o vídeo do
acontecido – que vem sendo veiculado apenas por websites mais
sensacionalistas. Se ele tivesse assumido uma postura mais humilde, a
cobrança nao seria tanta.
Com o conhecimento vem também
a responsabilidade. Carregamos o peso da perfeição
que tentamos impor sobre os outros – no caso de Russell, o feitiço
literalmente virou contra o feiticeiro. Kony tambem acredita que
esteja fazendo o bem, ainda que de forma distorcida – o jovem
yankee, ao colocar sobre si o título
de salvador e portar-se como um Kony às
avessas, acabou por provar do próprio
veneno: a pureza e perfeição
que tão forcadamente ele
quer pregar sobre os outros sem conhecimento de causa se provou nula
e inexistente em um episódio
que já não
seria banal se tivesse acontecido com qualquer outro cidadão
- mas que tornou-se ainda mais absurdo vindo de alguém
que tentava personificar os ideais nos quais ele mesmo provou ser
falho. Hipocrisia extrema?
Esperemos
ansiosos pelos próximos
capítulos.