Friday, March 16, 2012

A máscara finalmente caiu?


dias venho acompanhando todo o sucesso de Kony 2012 sem me manifestar de forma mais clara. Morando nos Estados Unidos há três anos, envolvida com igrejas diferentes e estudantes universitários no meu dia-a-dia, o nome Invisible Children é figurinha carimbada no meu cotidiano – a ONG tem pequenos grupos em muitos campi de universidades norte-americanas. Como estudante em Atlanta, na Georgia, fiz parte de em dos grupos que atuava na conscientização acerca de problemas africanos dentro da Kennesaw State University. Paralelamente, participava da equipe de Model African Union (modelo da Liga das Nacoes Africanas), comum a universidades daqui, com competições nacionais e internacionais, encontrando-se duas vezes por semana com meus peers para treinar procedimentos de diplomacia e discutir problemas pertinentes ao território africano. Como alguém que trabalhou como tradutora e intérprete de missionários norte-americanos no Brasil por quase dez anos ininterruptos, já conhecia há muito tempo a índole “salvadora” das pessoas que nascem aqui – e a mania de estabelecer simplismo para problemas de nações complexos demais para o nacionalismo cego em vigência, parte inata do pensamento de muitos nascidos nesse país de dimensões continentais. Ouvi muitíssimas vezes que os americanos tem como dever tomar conta do mundo, por terem mais recursos e conhecimento – ouvi essa mesmíssima opinião tantas outras vezes ainda morando no Brasil, o que me indignava muito, deixava-me perplexa, até que, morando em território norte-americano percebi que, sim, eles acreditam piamente nessas palavras. Seja pela dimensão continental do país, seja pelo respeito ao passado, seja pela idolatria aos fundadores da nação, seja pela educação fundamental e média deficiente – compensada nos dois primeiros anos de “general education” de qualquer faculdade que seja cursada aqui, semelhantes ao nosso Ensino Médio, caríssima e desnecessária aos muitos estudantes internacionais que tenho como amigos por todos os campi pelos quais passei – e pela liderança ensinada como parte do crescimento humano (que em minha humilde opinião, serve para compensar a falta de conhecimento – você sabe se impor, ainda que seja uma anta que não saiba nada sobre o mundo), como forma de ser ouvido em uma terra onde muitos são talentosos, e sim, egocêntricos... seja por livros de história tendenciosos, ou mesmo por aulas sobre história e geografia mundial que ou não fazem parte dos currículos escolares ou são escritos por pessoas da terra do Tio Sam, com esse mesmo nacionalismo exacerbado envolvido... como povo, eles crêem, com uma certa inocência, que são, sim, salvadores do mundo.
Nasci filha de descendentes de espanhóis, africanos, índios e poloneses. Aprendi a respeitar as diferentes nações e o “diferente” como um todo, como norma, como parte de uma realidade muito além do que possamos compreender. Sempre aceitei diferentes culturas partindo do ponto que as mesmas são representadas por diferentes idiomas, que são em si representações de diferentes recortes de mundo, assim complexos de serem completamente entendidos - a não ser que haja convivência com o povo em questão. Nunca aceitei xenofobia ou representações simplistas das nações desse mundo. Sempre tive horror a momentos da história como o Colonialismo, o Neo-colonialismo, Crusada, Inquisição e as muitas guerras já acontecidas na história mundial... qualquer tentativa de imposição de uma cultura sobre a outra como a correta para mim é inválida e anula-se em si mesma – a noção de belo ou correto no que tanje a culturas é inconclusiva, pessoal, relativa. O mesmo belo e correto existem em todas as culturas, em formas distintas. Ceifar o direito do outro em proveito próprio por qualquer justificativa dada é algo injusto, egoísta. Sempre fui simpatizante de estudos de paz (Peace Studies) e nunca apoiei qualquer iniciativa de guerra – uma das razões pelas quais vim a esse mesmo país, tão conhecido por incitar guerras e com estudiosos do conceito de paz e manutenção do mesmo tão controversos (vim para Atlanta para estudar mais acerca de Martin Luther King Jr. e já conheci um dos filhos dele, algo que me emocionou profundamente.)
Em abril do ano passado, estive na apresentação de um sample de Tony – o que havia sido feito até então com essa história, de um menino vitima de atrocidades como child-soldier – seguido do depoimento emotivo de um rapaz de Uganda salvo pelo projeto, alguém de quem virei amiga próxima. Fiquei encantada não apenas com a ajuda da ONG, mas com a historia de superação do jovem de 24 anos, cursando sua segunda faculdade – Teologia como uma delas – e sonhando em ser representante de seu país em relações exteriores algum dia. Encontrei meu novo amigo em outro evento da Invisible Children realizado alguns dias depois no centro de Atlanta, em uma campanha chamada “25”, que pedia 25 horas de silêncio pelos anos que Joseph Kony não havia sido capturado, e que terminava nessa casa de shows fechada pela ONG para celebrar o silêncio supostamente oferecido como respeito à falta de voz dos ugandenses – com direito a contagem regressiva das horas e gritaria como uma torcida de futebol quando as 25 horas foram vencidas. Honestamente, achei patético – primeiro, os ugandenses não tinham noção do feito, segundo porque a platéia em questão, apinhada no local, constava de menos de 100 pessoas, todos jovens brancos, ricos e que vêem as iniciativas da organização como forma de sair da rotina – de conhecer o “novo”, de ajudar com os recursos que, na mentalidade retrógrada e restritiva deles, só eles possuem. Os únicos representantes de nações diferentes lá éramos eu e o jovem de Uganda. Vídeos com máquinas possantes foram feitos – marca da Invisible Children – com documentaristas conhecidos, uso de grua, fotos com poses planejadas. A mesma iniciativa aconteceu em outras 25 cidades americanas, e os organizadores incitavam o espírito de competição nos participantes, pedindo as poses mais comoventes possíveis, algo bem comum as pessoas daqui - como se o problema todo fosse sair bonito na foto ou parecer mais empolgado, envolvido, engajado do que as outras cidades participantes. Lidar com emoções também foi algo usado – espaço para escrever cartas a representantes governamentais do país pedindo ação contra Kony em envelopes e papéis de carta com a marca da ONG, fotos belíssimas – e comoventes - de pessoas de Uganda desfiguradas, espaço com velas a serem acesas para as vítimas – tudo muito bem planejado. Nos eventos como um todo, vi algo já tão conhecido e vivenciado por mim em tantos anos trabalhando com cidadãos norte-americanos: tornar o não-conhecido exótico, fazendo do mesmo um produto passível de ser vendido para auferimento de lucro, colocando-o como um animalzinho em uma jaula, com a possibilidade de ser examinado e não entendido, mas convertido aos meios dessa terra. O mecanismo é sempre o mesmo: o que é diferente deve ser transformado em norte-americano para ser ouvido e respeitado – comportamento mais xenófobo, impossível... a questão toda é vestir a xenofobia com um Cristianismo barato, onde a plena aceitação é pregada mas não vivida, dizer que tudo está sendo feito em nome de Deus para que os questionamentos não venham. Pessoas entrando em meu país para me converter a religião que eles acreditam ser a certa e única aceitável ainda que não saibam nada das minhas origens e história como um todo? Imagina, tudo é feito por uma boa causa. Pessoas entrando em meu país com câmeras possantes, tirando fotos de minha casa, família sem pedir permissão alguma e vendendo tudo como uma situação digna de pena dos mais favorecidos? Sim, claro – o motivo é válido. Não me entendam mal, sou completamente a favor de iniciativas que tragam alívio aos aflitos, conforto aos que precisam – desde que a cultura nao seja imposta sobre outra como tentativa muito bem disfarçada de dominação – o que sempre foi o caso dos norte-americanos. O que esperar de uma nação que passou a ser ouvida no mundo através do apoio as duas guerras mundiais, sendo oportunista, vendendo armas para que os países europeus pudessem destruir uns aos outras, com a morte de inocentes em questão – o que esperar de uma nação que cresceu e ganhou importância no mundo colhendo os frutos do derramamento de sangue inocente?
Uma das aulas obrigatórias em qualquer universidade americana, independente da graduação escolhida é denominada intercultural communication (comunicação intercultural), e tem como intuito ensinar os estudantes daqui a lidar com estrangeiros. Ainda como aluna de English as a Second Language, fui convidada a falar em idiomas diferentes para os ouvintes sentenças planejadas – como forma de chocá-los e conscientizá-los da presença de diferentes nações no mundo. Fui muito ativa na International Student Association da mesma universidade, e sempre me senti em casa, extremamente à vontade em meio a estudantes de diferentes países, todos felizes pela oportunidade de estudar nos Estados Unidos, mas cansados, como eu, de serem vistos como animais exóticos dentro e fora das salas de aula. Aquele era nosso espaço, nosso pequeno país, pleno em liberdade – e apenas alguns poucos americanos apareciam de vez em quando também para tentar nos apresentar a cultura yankee. Era comum ver organizações cristas lá tentando recrutar estudantes de forma enganadora para supostas aulas de inglês em suas casas – que na realidade eram pretexto para lições de cristianismo – uma tentativa aberta de lavagem cerebral. Nos muito grupos de universitários cristãos que frequentei – sendo muitas vezes a única estrangeira em meio a eles, em grupos muitas vezes de mil pessoas – vi, em todo Spring Break, Summer e Fall Break, estudantes indo a diferentes países “servir”, sempre com o intuito real de converter as pessoas ao “American way of life” e ao Cristianismo. Sim, muitos ações benéficas eram feitas nas locações escolhidas – o que nunca me agradou foi enganar, propositalmente, os nativos que os recebiam de bracos abertos. Tentei iniciar grupos de ajuda a estudantes internacionais – parei com os mesmos quando vi que o planejamento estrategico, sempre meu, era modificado para servir propósitos de evangelização e a liderança sempre era dada a norte-americanos muito mais novos e menos experientes que eu, sempre com a desculpa de que “não entendo sobre o país por não ter nascido aqui”, que sempre entendi, claramente, como preconceito velado, revestido por um Cristianismo norte-americano hipócrita, mal-entendido, piamente aceito e ambicioso, sem o mínimo de respeito pelo passado, presente e história das culturas visitadas – e da minha própria.
Quando vi o vídeo Kony 2012, não me surpreendi com a qualidade do mesmo – trabalhei com jovens talentosíssimos em ministérios evangélicos grandes e pequenos, e sei, por experiência, que as pessoas aqui tem uma auto-confiança em si absurda, espírito de liderança que lhes é ensinado desde muito cedo, recursos tecnológicos maravilhosos e uma ousadia que leva ao talento – e expressão livre do mesmo. Assisti ao projeto com a desconfiança que me sempre foi comum – sabendo já das intenções contidas nele. Sempre questionadora, passei a ler mais e mais sobre a ONG, e tendo mais conhecimentos trazidos pela experiência de vida aqui - ainda que não tão ampla - e questionar os motivos reais de toda a campanha. Ao morar nos Estados Unidos, as primeiras coisas aprendidas são 1.Eles são excelentes marketeiros – vendem ate sua mãe sem que você perceba, e você ainda a compra sem nem saber que esta pagando por isso, 2.Eles são mestres em manipulação de informação, tornando o complexo simples, buscando auto-afirmação, reconhecimento e aplauso. Parti para os fatos nas muitas leituras que fiz: Kony não encontra-se em Uganda há seis anos; apenas 30% da renda obtida pela ONG são revertidos para os ugandenses – o restante é usado em salários exorbitantes e muitas viagens; todos os líderes são cidadãos norte-americanos, apenas o “ground staff” (equipe de terra) sao ugandenses; não háa um plano real de ação além da conscientização, com tratamento das crianças que crescem e tornam-se adultos sem infra-estrutura e caem na prostituição ou drogas; não há parcerias reais com o governo de Uganda, apenas com o governo americano e a ONU; essa mesma parceria anterior pode ser justificada pela presença de petróleo ainda não explorado no país africano, o envio de especialistas pelo governo americano para capturar Kony no ano passado sem sucesso e a discussão do envio de militares daqui para parar as ações de um líder em decadência que nem se encontra mais no país em questão e a ausência de discussães acerca dos danos que podem ser causados com a captura do vilão, com a possibilidade de mais mortes de inocentes ao risco de ações impensadas, provenientes de um país que nunca se interessou em conhecer nações estrangeiras a fundo – a não ser que benefícios possam ser colhidos, seja por ganho de território, recursos naturais ou exaltação dos Estados Unidos. É o mesmo princípio usado com os universitários internacionais – pagamos quatro vezes mais para ter a mesma educação norte-americana e temos nosso cérebro comprado se os resultados obtidos academicamente são bons através do oferecimento de cidadania americana – para que eles usem tambem nosso mérito científico uma vez mais para benefício próprio... tudo muito óbvio, escancarado.
Sim, sou a favor da conscientização da problemática dos soldados-crianças. Sim, sou a favor de métodos de pacificação e salvação para as pessoas que vem sofrendo por conta da barbárie praticada por Kony – o que me incomoda profundamente é vender americanismo enrustido em uma salvação com benefícios a serem obtidos já pensados de antemão – desconhecidos apenas pelo oprimido, desesperado por solução para seus problemas, não pensando no que ele pode perder ao aceitar a “ajuda” com intenções ambiciosas disfarçada de benfeitoria. Norte-americanos não dão ponto sem nó.
A organização apresenta, como tudo relacionado a Estados Unidos e Cristianismo aqui, a imagem de perfeição, revestida de uma hipocrisia irritante. Os simpatizantes, fanáticos muitas vezes, defendem a mesma com unhas e dentes, tornando-se emotivos a qualquer palavra contra as ações dos líderes da Invisible Children, que passaram a ser ainda mais comuns com o lançamento de Kony2012 e um conhecimento em maior escala das falhas presentes no gerenciamento da ONG – incluindo a tão pregada transparencia crista, requisitada de todos que moram nos Estados Unidos. Fui ofendida por muitos amigos meus daqui por questionar a falta de prestação de contas da IC e a falta de respeito e simplismo com que eles tratam a problemática dos “child soldiers” de Uganda. Sim, admiro o espírito de justiça a qualquer custo norte-americano – a noção de certo e errado é supostamente inata a eles – ainda que tendenciosa, muitas vezes. Sim, admiro o ativismo e a iniciativa... mas não posso me calar e dizer que não esperava o que se tornou público hoje: o episódio de suposto surto do co-fundador da organização, Jason Russell (masturbação e depredação em público).
Ser falho é algo inato ao ser humano, e a IC se colocava acima de tudo e de todos – qualquer pessoa que ousasse criticar a ONG ou pessoas ligadas a ela era alvo de chacota – como eu mesma fui, deletada por muitos supostos amigos do Facebook e outras redes sociais por apontar falhas deles. Ver um pai de família, casado, com duas crianças e planos de ter mais sete “surtar” e caminhar nu por uma praia de San Diego, na Califórnia, sob influência de alguma substância – ainda não sabe-se ao certo se álcool ou entorpecente – batendo em carros e assuntando as pessoas que cruzavam seu caminho, ainda que humano, tornou-se patetico ao extremo. Talvez uma lição de humildade à pessoas que, incumbidas do espíritos de salvadores e de representantes de Deus nessa Terra (os mesmo títulos que Kony usa para definir-se), ousavam usar tão abertamente. O acontecido não me surpreende – sou cética, não crio expectativas em relação à ninguém, não confio piamente nas pessoas. Apenas fiquei perplexa com a rapidez com a qual a “máscara” usada caiu, ainda de forma tão aberta e com coincidências estranhas – o rapaz em questão foi pego masturbando-se em público quando pessoas daqui lutam tão arduamente por manter uma imagem pura e sem arranhões, quando Russell é tido como o idealizador e sonhador de uma ONG que luta contra a opressão e abusos sexuais e psicológicos impostos a crianças por um lunático sem limites. Como confiar crianças indefesas a um pervertido?
Fica a lição de não acreditar em nada sem questionar – no caso exposto, na “bondade” desmedida, sem segundas intenções, por “santos” perfeitos; tudo tem um preço. Outra lição a ser aprendida é que, como todo e qualquer povo, os norte-americanos, tão idolatrados nesse mundo, também são passíveis de falhas, muitas delas óbvias e patéticas como essa.
Aguardo agora as desculpas esfarrapadas a serem usadas por Jason Russell para o episódio. Já notei que a mídia norte-americana vem usando um tom neutro, não expondo o vídeo do acontecido – que vem sendo veiculado apenas por websites mais sensacionalistas. Se ele tivesse assumido uma postura mais humilde, a cobrança nao seria tanta. Com o conhecimento vem também a responsabilidade. Carregamos o peso da perfeição que tentamos impor sobre os outros – no caso de Russell, o feitiço literalmente virou contra o feiticeiro. Kony tambem acredita que esteja fazendo o bem, ainda que de forma distorcida – o jovem yankee, ao colocar sobre si o título de salvador e portar-se como um Kony às avessas, acabou por provar do próprio veneno: a pureza e perfeição que tão forcadamente ele quer pregar sobre os outros sem conhecimento de causa se provou nula e inexistente em um episódio que já não seria banal se tivesse acontecido com qualquer outro cidadão - mas que tornou-se ainda mais absurdo vindo de alguém que tentava personificar os ideais nos quais ele mesmo provou ser falho. Hipocrisia extrema?
Esperemos ansiosos pelos próximos capítulos.